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OBJECTIVOS

Estes textos são uma mera justificação de gosto, dirigida em primeiro lugar aos amigos, e não são crítica de cinema, muito menos de teatro ou arte em geral... Nos últimos tempos são maioritariamente meros comentários que fiz, publicados principalmente no facebook ou no correio electrónico, sempre a pensar em primeiro lugar nos amigos que eventualmente os leiam.
Gostaria muito de re-escrever os textos, aprofundando as opiniões, mas o tempo vai-me faltando...
As minhas estrelas (de 1 a 5), quando as houver, apenas representam o meu gosto em relação à obra em causa, e nunca uma apreciação global da sua qualidade, para a qual não me sinto com competência, além da subjectividade inerente. Gostaria de ver tudo o que vale a pena, mas também não tenho tempo...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

SILENCE (SILÊNCIO), de Martin Scorsese



SILÊNCIO (Silence), de Martin Scorsese

O que mais impressiona os espectadores deste filme, julgo eu, é o dilema que se põe aos que são perseguidos, entre o ceder perante o sofrimento provocado pela tortura, pela visão da tortura usada contra outros ou pela morte quase certa se se persistir na crença ou a recusa em falar, mantendo a posição, aconteça o que acontecer, que deverá ser a tortura e a morte.

Neste caso trata-se da perseguição aos cristãos no Japão do século XVII (cerca de 1640), movida pelo poder imperial preocupado com tudo, incluindo as novas ideias, que pudesse vir a pôr em causa o Japão feudal. É essa situação que missionários jesuítas portugueses vão encontrar na sua missão de tentar difundir, clandestinamente, as ideias do cristianismo, em que a maior parte deles acredita.

Alguns cedem (apostatam, termo religioso para a negação da fé), chegando a integrar-se completamente na sociedade japonesa, tornando-se inclusive budistas. Outros persistem na sua missão e são mortos, juntamente com os japoneses que eles conseguiram catequizar e que começam a revoltar-se contra a repressão religiosa e a exploração social do povo (figura da rapariga na prisão). O filme de Scorsese mostra-o através das suas várias personagens.




O realizador norte-americano adaptou uma obra homónima de um escritor católico japonês, Shusaku Endo (1923-1996). Os que apostatam lamentam não ter conseguido ouvir o seu deus. Daí o título da obra, Silêncio. Hoje o Japão conta com cerca de 1% de cristãos, entre os quais, 0,3 % de católicos. E o budismo continua a ser a principal religião do país. 

O mesmo tema, baseado no romance de Endo, foi já abordado no cinema português no filme "Os olhos da Ásia", de João Mário Grilo. Curiosamente, o português filmou em Sintra e o norte-americano em Taiwan (território chinês ainda autónomo). As razões parecem ter sido, nos dois casos, económicas...


A questão da língua utilizada acaba por ser importante para o espectador português porque no filme de Scorsese só se fala japonês e inglês... o que não deixa de ser um pouco chocante, apesar da convenção hollywoodiana... Aliás só já com o filme adiantado é referido que os jesuítas que partem em missão são portugueses e afinal poderiam talvez ser de outra nacionalidade qualquer que pouco adiantaria para a questão em causa - o que pode levar à apostasia, tal como Scorsese a põe.

Para um ateu, como é o meu caso, o grande interesse da obra acaba por residir na relação que tem com outras situações de repressão extrema, e não só religiosa, como a repressão política principalmente. No nosso País tivemos aliás os dois casos, ambos protagonizados no poder por católicos apoiados pela hierarquia religiosa - a inquisição (no século XVII a XIX, ao longo de 285 anos) e o fascismo salazarista (no século XX, ao longo de 48 anos), com a sua perseguição aos que se batiam pela liberdade. Neste último caso no comportamento na prisão perante as terríveis torturas, algumas acabando na morte, usadas para tentar que os prisioneiros falassem denunciando os companheiros de luta. No primeiro nas inimagináveis torturas, sempre acabando na morte para os que não cediam, para que se convertessem ao catolicismo.

Grande parte da obra de Scorsese mostra a violência de seres humanos contra os seus semelhantes e fá-lo, reconheça-se, sem nunca ser gratuito. Aliás entre os seus melhores filmes estão os que se dedicam a mostrar o gangsterismo no seu país, os EUA. Mas também aqui, em "Silêncio", há todo um repositório de métodos de violência extrema, desde à morte pela fogueira até à decapitação pura e simples. Não chega a chocar porque sabemos que é a realidade em períodos feudais semelhantes, no Ocidente ou no Oriente - em que "o povo é carne para canhão" e todas as arbitrariedades eram permitidas ao poder.

No entanto a coerência de Scorsese falha num ou noutro aspecto dos seus filmes e um deles que convém referir tem justamente por protagonistas, apresentados como vítimas, os budistas, mas num grande país do Oriente, vizinho do Japão e algumas vezes vítima do imperialismo japonês, a China, que se libertava do opróbrio do colonialismo ocidental de séculos, acabando por se converter num filme de propaganda anti-chinesa e anti-comunista, porque as novas ideias sociais são afinal as que entram em choque com o budismo mais tradicionalista. 

O que "Silêncio" vem uma vez mais demonstrar é o saber fazer cinema do grande realizador, ajudado por uma magnífica fotografia, que sublinha a miséria e as condições deploráveis em que viviam os camponeses no Japão no século XVII e, principalmente, o facto desta obra nos fazer pensar.



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